Desde 2021, e por um horizonte temporal de quatro anos, que o projeto T-Factor está a dinamizar usos e atividades temporárias de intervenção artística e tecnológica na freguesia da Trafaria, Almada. O objetivo? Criar condições para um futuro mais inclusivo de um novo projeto de reconversão urbanística, contribuindo para a coesão e valorização patrimonial das comunidades locais. Descubra mais sobre o impacto do T-Factor na Trafaria.
Quem passava, desacautelado, pela sede do Clube de Futebol da Trafaria, Almada, ao final da tarde de dia 31 de outubro de 2021, estaria tentado a pensar que o clube desportivo local teria trocado de atividade: da bola para a música. Afinal, a algazarra era grande, em torno de um espetáculo de Fado vadio proporcionado por diversos músicos, sem palco, nem estruturas pré-montadas.
Na verdade, tratava-se da passagem do Fadiagens, um espetáculo itinerante de fado vadio que percorreu as ruas da Trafaria naquele dia, parando (e entrando) em diversos pontos emblemáticos do bairro para concertos de 30 minutos. Além do Clube de Futebol da Trafaria, o cortejo musical passou pela Sociedade Recreativa Musical Trafariense e pelo café “O Cortiço”.
Nestas Fadiagens, a artista Marta Miranda, vocalista do grupo O’queStrada, foi presença incontornável. Mas não a única: a ela juntaram-se outros cinco músicos dos O’queStrada e fadistas da Trafaria, onde o Fado tem uma tradição muito forte.
Há, no entanto, mais nesta história do que um dia diferente – e musical – na Trafaria. O Fadiagens foi uma das iniciativas integradas no piloto português do projeto europeu T-Factor, que tem trabalhado usos e atividades temporárias nesta comunidade, de forma a contribuir positivamente para dinamizar ligações locais e valorizar heranças comunitárias. Nas Fadiagens, além da música pelas ruas, desenvolveram-se novas redes colaborativas e reforçou-se o fado vadio como parte da herança cultural da Trafaria. Foi ainda uma ação que dissolveu fronteiras entre a academia, comunidade artística e comunidade local, tal como todas as propostas dinamizadas pelo T-Factor.
Como o T-Factor está a contribuir para futuros mais inclusivos
Com pilotos em vários locais da Europa, o projeto T-Factor (Horizonte 2020) trabalha com diferentes iniciativas de regeneração urbana (em diferentes fases de desenvolvimento) de forma a desbloquear o potencial transformativo de usos e atividades temporárias nos locais e comunidades abrangidas. São 25 parceiros em 10 países juntos numa plataforma internacional de apoio e intercâmbio de conhecimentos, tendo em vista a cocriação de cidades com urbanismo temporário.
No caso português, o T-Factor tem promovido iniciativas temporárias relacionadas com o projeto de conversão do antigo estabelecimento prisional da Trafaria no Instituto de Arte e Tecnologia da Universidade NOVA de Lisboa (NOVA IAT). Os usos e atividades “no entretanto”, antes de a conversão ser concluída, pretendem contribuir positivamente para o futuro NOVA IAT e para as comunidades locais da Trafaria, extremamente frágeis, em risco de gentrificação grave e desaparecimento. Nascida de uma comunidade de pescadores, a Trafaria mantém uma identidade própria dentro da margem sul do Tejo, marcada por uma memória partilhada das suas gentes e pelo património cultural, arquitetónico e natural onde assenta.
A Universidade NOVA de Lisboa é o parceiro responsável pela dimensão portuguesa do T-Factor, juntando a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (NOVA FCSH) e a Faculdade de Ciência e Tecnologia (NOVA FCT). Carla Fernandes, coordenadora do grupo de investigação Performance & Cognição, assume a coordenação do projeto no ICNOVA.
Dar palco aos poetas da Trafaria
O projeto tem aprofundado, ao longo do tempo, ligações com a comunidade da Trafaria, as suas pessoas e entidades. Desse conhecimento orgânico ancoram-se os usos temporários que possam criar valor permanente para a comunidade, através de práticas artísticas colaborativas. Fadiagens é um exemplo, mas não é, de todo, caso isolado.
Em 2021 e 2022, o T-Factor promoveu eventos anuais de Slam Poetry (uma forma de expressão artística que une poesia e performance) com a comunidade da Trafaria. A iniciativa permitiu gerar conexões com a comunidade local – e, na primeira edição, facilitar o conhecimento e abertura local ao projeto T-Factor –, assim como expandir a herança cultural ao criar (e dar ferramenta para) alternativas ao discurso autorizado de património (AHD).
Para cada edição, o trabalho com a comunidade da Trafaria (embora aberto a participantes de todas as localizações) assenta em três etapas distintas:
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- Slamaris – oficinas com artistas de Slam Poetry convidados, que mostraram o seu trabalho e partilharam conhecimentos com a comunidade.
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- Slamistoso – evento aberto em que os participantes das oficinas podem testar performances, mas ainda sem a carga de um campeonato e de classificações.
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- Poetry Slam Trafaria – os participantes das fases anteriores disputam entre si um campeonato, no qual as três primeiras performances recebem prémios.
As duas edições do evento de Slam Poetry na Trafaria permitiram envolver, de forma direta, os participantes da comunidade local. Viton Araújo, Nuno Piteira e Luís Perdigão, vozes emblemáticas do movimento Slam em Portugal, foram os formadores convidados. Entidades locais, como o Casino da Trafaria, a junta de freguesia e o Grupo de Teatro da Gandaia associaram-se à iniciativa, contribuindo para o sucesso da mesma.
Difundir e preservar as vozes e a história da comunidade
O impacto do T-Factor faz-se neste equilíbrio entre o uso temporário e os contributos positivos para a comunidade que possam ser prolongados no tempo. Nesta lógica, surge também a mais recente iniciativa T-Factor na Trafaria: “CONTOS DA TRAFARIA”, um podcast de 12 episódios que dá voz às figuras mais emblemáticas das Terras da Trafaria e as propaga para além do espaço da freguesia. Simultaneamente, cria um repositório digital de memórias de pessoas emblemáticas para a comunidade.
O podcast surge do encontro entre Marta Miranda, que já se tinha associado à iniciativa Fadiagens, e o T-Factor, com coordenação de Carla Fernandes. Depois da fase de gravação das entrevistas com os convidados locais, conduzidas por Marta Miranda, os episódios são divulgados semanalmente (a estreia foi feita a 21 de março, 2023) e disponibilizados nas plataformas habituais (Spotify, YouTube e SoundCloud). Alguns episódios são marcados por eventos de “estreia” na comunidade, com audição pública coletiva, seguida de conversas/debates.