O Projeto Exploratório “Videovigilância, Dados e Privacidade no Espaço Público em Portugal” (Vigi_Portugal), liderado pelo investigador Paulo Victor Melo (ICNOVA), recebeu 49 mil euros de financiamento da FCT e será acolhido pelo Instituto de Comunicação da NOVA.
O projeto pretende explorar, numa perspetiva interdisciplinar, a videovigilância dos espaços públicos em Portugal, partindo da compreensão de que a tecnovigilância articula questões de mediações comunicacionais, relações de poder, interesses estatais e de grandes corporações tecnológicas, bem como direitos de cidadania. Nesta entrevista ao ICNOVA, o investigador fala em pormenor sobre o projeto, os seus objetivos e os resultados esperados.


ICNOVA: Para começar nossa conversa poderia nos dizer o título do projeto? E em qual o contexto o projeto foi criado?
Paulo Victor Melo: O projeto chama-se “Videovigilância Dados e Privacidade no Espaço Público em Portugal” e foi aprovado no âmbito do concurso de projetos exploratórios em todos os domínios científicos da FCT, Fundação para a Ciência e Tecnologia. E a motivação principal foi dar continuidade e aprofundar uma pesquisa que eu já tenho realizado desde 2022 sobre a questão da tecnovigilância nos espaços públicos no Brasil e em Portugal. Então, aquilo que eu já encontrei, em termos de resultados, e em termos de análises, sobretudo no caso da videovigilância em Lisboa, queremos alargar isto para o conjunto do país.
ICNOVA: Então, a ideia é expandir de um âmbito municipal para um âmbito nacional?
PVM: Exatamente.
ICNOVA: E quais foram os resultados que conseguiram alcançar nessa primeira etapa da investigação?
PVM: Então, o projeto base para este que foi aprovado pela FCT, ele se focalizou no Sistema de vídeovigilância do Bairro Alto, que foi o primeiro sistema de Lisboa, não o primeiro do país, mas o primeiro da capital, que completou recentemente 10 anos de funcionamento. E a principal conclusão que chegamos é que as motivações para a instalação do sistema de videovigilância no Bairro Alto não são confirmadas por dados estatísticos que evidenciam a necessidade do uso do sistema. Uma questão que me parece importante dizer é que o uso de câmeras de videovigilância, e isso está em vários pareceres da Comissão Nacional de Proteção de Dados, ele por si só, já representa uma série de desafios em relação ao direito à privacidade. Algo, inclusive, está salvaguardado na Constituição Portuguesa, que é o direito que cada um de nós tem ao anonimato no espaço público. Nós temos o direito de circular pelos espaços públicos sem sermos identificados.
ICNOVA: A videovigilância não fere também o regime de proteção de dados da União Europeia (RGPD)?
PVM: São duas coisas diferentes. Na verdade, o regime de proteção de dados, ele se sustenta neste direito primeiro, que é o direito ao anonimato. As pessoas podem andar livremente sem serem identificadas. Qual é a grande questão? É que as câmaras – e este é o discurso que sustenta inclusive a sua instalação – elas têm como fim o combate à criminalidade. Só que quando as câmeras são ativadas, elas registram imagens de todas as pessoas que por elas passam. Isto contraria um princípio constitucional que é o direito ao anonimato. As pessoas estão sendo registradas no espaço público mesmo sem ter incorrido em nenhum crime.
Então, a Comissão Nacional de Proteção de Dados, em todos os seus pareceres, diz sempre que para se utilizar deste expediente, deste instrumento da videovigilância, é preciso ter uma argumentação, uma fundamentação muito sólida que deixe explícito que esse direito ao anonimato, ele já vai ser violado, mas ele justifica-se colocá-lo em discussão para a proteção de bens e de pessoas. Só que para isso é preciso ter dados estatísticos, é preciso que esses dados estatísticos não sejam, por exemplo, sobre uma cidade ou sobre um conselho, mas os dados sejam sobre a área circunscrita em que as câmeras vão estar localizadas, porque você pode ter um índice de criminalidade alto num conselho, mas as câmeras estarem em outro local, uma zona onde não decorre o problema…
A União Europeia têm legislações bastante firmes no sentido de preservar esse direito. Isto é ainda mais desafiador porque não há dados estatísticos, não apenas sobre a relação entre vídeovigilância e diminuição da criminalidade, mas não há dados tornados públicos e não há esclarecimento à população sobre quem gere essas informações, para onde essas informações vão? Por quanto tempo elas ficam preservadas? O que acontece se, por exemplo, o Ministério Público fizer a solicitação de uma imagem para um processo judicial?
Só para dar um exemplo: no Bairro Alto há as placas informando que há sistema de vídeovigilância está circunscrito àquela zona. Isto é obrigatório pela legislação portuguesa. Só que se nós formos observar aquelas placas, o trecho da lei que está ali citado é o trecho da lei número 1 de 2005, que foi a primeira lei de videovigilância de Portugal. Só que essa lei não existe mais. A lei em vigor é a lei 95 de 2021, então isto não foi atualizado. A lei nº 1 de 2005 autoriza captar e gravar imagens, já a lei de 2021,- por uma alteração que aconteceu 2012 e foi confirmada no 2021- autoriza que as câmeras captem e gravem imagens, mas caso haja perigo e necessidade, elas também podem captar o som. Então aquelas câmeras elas têm funcionalidades, ou melhor podem vir a ter funcionalidades, para captar também o seu som. Isto não estava na lei de 2005 nem está anunciado publicamente.
ICNOVA: Além disso existe um direito à propriedade da sua imagem, que é direito inalienável: a imagem e voz de uma pessoa não podem ser veiculados sem a sua devida autorização expressa.
PVM: Pois, exatamente. Mas uma coisa é, digamos, que decorra uma manifestação no Bairro Alto e por ali passem mais de 500 pessoas ao mesmo tempo em frente à câmera, nesse caso você não consegue identificá-las individualmente. Outra situação é você estar numa esquina conversando com um amigo e uma câmera captar o seu som, e registar a sua conversa. Isto tem outra implicação em relação ao direito à confidencialidade, direito à propriedade de imagem, direito ao anonimato, etc. Então, voltando ao projeto, a ideia é analisar os dados dos apontamentos que já existem e coletamos sobre Bairro Alto e agora é alargar esta metodologia para o resto do país .
Uma questão extremamente importante que identificamos na pesquisa inicial no Bairro Alto – é que é preciso, sobretudo, que os gestores públicos escutem as pessoas que vivem nas zonas em onde se pretende instalar essas câmeras. Em parceria com a Junta de Freguesia da Misericórdia foi feito um inquérito e entrevistas junto a moradores do Bairro Alto e a Associação de moradores e de comerciantes. E as duas associações relataram que a instalação das câmaras significou a redução do número de agentes policiais no território do Bairro Alto. Nos inquéritos confirmaram que a câmera é importante par segurança sim, verdade, mas a câmera sem os agentes policiais ela não tem muita efetividade. Se nós formos pensar a política de segurança interna de Portugal, a lei de videovigilância é a primeira em 2005, mas em 2004 Portugal aprova o chamado “policiamento de proximidade”. E a videovigilância foi implementada como parte do policiamento de proximidade, isso é que acabou gerando uma gradual substituição dos agentes policiais pela câmera de vigilância.
ICNOVA: Agora sobre o projeto atual exploratório do FCT, você conquistaram 50.000 euros em financiamento, não é?
PVM: Quase 50 mil euros, 49 693,39 €, com duração de 18 meses de execução, começa em fevereiro com duração até agosto de 2026. O projeto tem uma equipa, eu estou o como investigador principal e a equipa inclui a Professora Ana Viseu, também do ICNOVA, a Professora Catarina Froes, do Centro de Referência de Investigação em Antropologia (CRIA) e o Tarcízio Silvia, um pesquisador Brasileiro da Universidade Federal do ABC, no Brasil.
ICNOVA: Então há um consórcio com o Brasil?
Sim, porque o Brasil, ainda que existam muitas diferenças do ponto de vista legal — por exemplo, Portugal tem uma lei nacional sobre videovigilância, enquanto o Brasil não tem uma legislação única, permitindo que cada cidade e estado legisle como bem entender —, possui muitos estudos de referência sobre videovigilância. Temos também dois consultores no projeto: Joaquim Paulo Serra, da Universidade da Beira Interior, e Gema Caldon, de Espanha, ambos com estudos sobre ciência, tecnologia e sociedade, entre outros temas. O projeto prevê ainda algumas contratações, com a incorporação de novas pessoas na equipa, sendo abertos concursos para esse fim.
ICNOVA: E como as estruturas do Instituto de Comunicação da NOVA irão auxiliar o projeto?
PVM: Iremos realizar reuniões híbridas e promover ações que acontecerão naturalmente aqui nas instalações do ICNOVA. Uma das propostas do projeto é a formalização de uma Rede Portuguesa de Estudos de Vigilância. Já estamos em contacto com professores da Universidade do Minho, da Universidade Autónoma de Lisboa, da UBI, do ISCTE e de outras instituições que também têm interesse no tema da vigilância. O projeto inicia em fevereiro e, em março, já teremos uma primeira reunião exploratória para pensarmos como será essa rede. O ICNOVA contribuirá sobretudo para a produção de conhecimento sobre este tema, que me parece cada vez mais relevante. Se pensarmos, por exemplo, que esta semana entrou em vigor na União Europeia o novo regulamento de inteligência artificial e que Portugal foi um dos países a defender o uso livre de inteligência artificial pelas forças de segurança, percebemos a importância da investigação na área. Desde 2 de fevereiro, Portugal está autorizado a utilizar tecnologias de inteligência artificial em nome da segurança nacional e foi um dos poucos países a defender esta posição.
ICNOVA: Mas quais seriam as implicações disso na prática?
PVM: Acho que Portugal tem a possibilidade de se antecipar para evitar e coibir potenciais abusos decorrentes de uma banalização da vigilância . Parece-me uma oportunidade a ter em consideração, não é? Pois, o que aconteceu de 2021 para cá? Algo que eu e a Professora Ana Viseu nomeamos como “banalização da vigilância em Portugal” — ou seja, um aumento considerável do número de pedidos para a instalação de sistemas de videovigilância no país. Por exemplo, numa das entrevistas que realizámos com a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), a representante mencionou uma cidade que solicitou a instalação de videovigilância. Entre os supostos crimes que justificariam o pedido, estava, por exemplo, a venda de alimentos por ambulantes numa praia. Argumentava-se que naquela zona poderiam ser comercializados alimentos sem fiscalização sanitária, o que poderia representar um risco. É claro que esta é uma preocupação válida do ponto de vista sanitário, mas isso não configura um crime. Poderia ser tipificado como uma contravenção, mas não um crime que justificasse o uso da videovigilância, colocando em risco o direito constitucional ao anonimato.
ICNOVA: E quais serão as novas cidades contempladas em Portugal?
Já existem 10 cidades que tem o sistema de videovigilância em funcionamento: Coimbra, Amadora, Leiria, Olhão, Vila Franca de Xira, Portimão, Figueira da Foz, Porto, Santa Catarina (Lisboa), Bairro Alto (Lisboa) e Fátima (Santuário de Fátima). Há 5 que estão autorizados mas ainda não instalados: Estremoz, Faro, Albufeira, Funchal, Santarém.
ICNOVA: E irão acompanhar as novas instalações dessas câmeras?
PVM: Nosso trabalho será nas cidades que já tem o sistema em funcionamento. E o que queremos fazer nessas 10 cidades? Primeiramente: a solicitação de informações às câmaras municipais sobre os contratos desses sistemas. Quais são as empresas que fornecem as câmeras? Como é que se deu isto por concurso público ou não? Quais os valores que as câmaras têm investido ano após ano. Quais são os dados que as câmaras municipais têm sobre a eficácia de sistemas? Vamos solicitar à polícia de segurança pública PSP ou a GNR – como é caso, por exemplo, do santuário de Nossa Senhora de Fátima que tem um sistema de videovigilância e na verdade quem opera é a GNR e não PSP. Que crimes o sistema de videovigilância contribuiu para coibir ou para encontrar os suspeitos e quais foram os resultados? Também iremos fazer entrevistas com associações de moradores, associações de comerciantes e juntas de freguesia dos territórios em que essas câmeras estão. E também realizar workshops sobre direito à privacidade e proteção de dados.
ICNOVA: E quais são os outputs previstos?
Sim, o projeto vai ter um site, e a ideia é que este site já fique pronto já nos primeiros meses onde teremos já informações disponíveis. Teremos também uma conferência sobre o tema da Tecnovigilância com conferencistas internacionais e portugueses. Há publicações em revistas científicas nacionais e internacionais previstas. Outra ideia, como eu disse, é criar a Rede Portuguesa de Videovigilância. Também propomos um policy paper que é uma contribuição para a institucionalidade portuguesa sobre o que poderia ser feito ou o que pode ser feito em termos de videovigilância pensando a proteção de dados e direito de privacidade.
ICNOVA: Muitos parabéns, boa continuação e imagino que terão bastante trabalho pela frente!
PVM: Sim, é verdade, estamos animados, muito obrigada!
Entrevista realizada por Bárbara Bergamaschi Novaes, Gestora de Comunicação do ICNOVA, em fevereiro de 2025.
Saiba mais
Nome do Projeto: Video-surveillance, Data, and Privacy in Public Space in Portugal
Acrónimo: Vigi_Portugal
Refª: 2023.12531.PEX
Investigador Principal: Paulo Victor Melo
Financiamento atribuído: 49 693,39 €
Equipa
Paulo Victor Melo – Investigador Responsável (Universidade Nova de Lisboa,
Portugal)
Ana Viseu – Membro (Universidade Nova de Lisboa, Portugal)
Catarina Fróis – Membro (Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Portugal)
Tarcízio Silva – Membro (Universidade Federal do ABC, Brasil)