Editores: Ivone Ferreira, João Carlos Martins, Melissa Pio, Éva Kaponya
Foi prorrogada até 11 de Fevereiro de 2022 a chamada para contribuições do número 36 da revista INTERACT , “Medo Líquido e Antídoto Cultural (digital)”, coordenada por Ivone Ferreira, João Carlos Martins, Melissa Pio e Éva Kaponya- http://interact.com.pt/

Medo líquido e o antídoto cultural (digital)

Há pouco mais de um ano e meio, nada fazia prever a transformação forçada que o mundo iria enfrentar e a avalanche de problemas para resolver em todos os planos. Ao mesmo tempo, a crise pandémica e consequentemente social, económica, política e cultural trouxe a prosperidade tecnológica e a afirmação da digitalização no mundo. Os cenários previstos no imaginário artístico e que só a este universo pertenciam, parecem agora fazer parte da realidade, conduzindo a uma sensação de irrealismo – como se fosse um mundo paralelo. Na era da ‘sociedade digital de risco’, os conceitos-chave que caracterizam o ambiente social desde o surto da pandemia passaram a ser ‘risco’, ‘medo’, ‘pânico’, ‘crise’ e (falta de) ‘confiança’ (Ward, 2020). O vírus que se propaga imparavelmente pelo mundo inteiro relembra-nos a “temível” descrição de ‘medo líquido’ de Bauman: o inimigo invisível que é “difuso, espalhado, confuso, solto, insuportável, livre, impercetível” e que “nos assombra sem motivo aparente”, podendo “ser vislumbrado em todos os lugares, mas não se vê em lugar nenhum” (Bauman, 2006, p.2). Ainda, de acordo com a sociedade de risco definida por Beck, os efeitos de diferentes controles e medidas governamentais, que visam impedir o desenvolvimento da pandemia, podem colocar em causa os “fundamentos da liberdade e da democracia” (Beck, 2009. P. 14).

Neste sentido, José Gil afirma que vivemos uma anti-vida, pois perdemos parte da nossa linguagem – “o toque e a espontaneidade” (Lucas, 2020). Quer isto dizer que perdemos a liberdade da vida, não só pela imposição do afastamento social, mas também por todas as regras que agora temos o dever de obedecer e que limitam os nossos movimentos, vontades e opções – limitam assim a liberdade e colocam em causa a noção de democracia até agora conhecida. Num enquadramento semelhante, Foucault fez equivaler o período da Revolução Industrial à sociedade da disciplina, identificando o confinamento como a sua técnica principal (Deleuze, 1992, p. 215). A organização do trabalho produtivo e em massa, bem como a vida social dividida entre instituições – como o trabalho, a família ou a escola – identificam os diferentes confinamentos, com regras associadas, cumpridas e consentidas pelo ser humano (idem). Ainda reconhecida pelo mesmo autor “como um futuro próximo”, mas amplamente caracterizada por Deleuze, este modelo social é substituído pela sociedade do controle, onde “nunca se termina nada” (idem, pp. 215 – 216). Assim, ainda no início do século XX, a disciplina e o confinamento são substituídos pelo controle fundamentalmente numérico – passamos a ser o que numericamente produzimos e somos progressivamente identificados e controlados através de um algoritmo (idem, p. 219).

Ora, não estará a pandemia a evidenciar este modelo social? Entre teletrabalho e telescola, numa vida confinada e regulamentada por Estados de Emergência, não estaremos nós em plena sociedade do controle? Não estaremos ainda, numa consentida reconfiguração da técnica de confinamento, agora anulada no tempo e no espaço, colocando em ênfase os princípios do controle? O impacto da pandemia foi abrangente e esmagador, causando uma queda grave no crescimento económico (Tidey, 2020). Os sectores culturais e criativos – expostos pelas suas principais vulnerabilidades, como a dependência da proximidade física (Weigel, 2020), a precariedade dos profissionais e restrições orçamentais (UNESCO, 2020) – encontraram-se entre os mais atingidos (OCDE, 2020). Além disso, a pandemia também teve profundas consequências negativas no gozo dos direitos económicos, sociais e culturais (Committee on Economic, Social and Cultural Rights, 2020) e trouxe ainda, efeitos psicológicos e sociais adversos e significativos (Saladino, Algeri e Auriemma, 2020). A mudança drástica nas rotinas diárias devido às medidas de prevenção (como o distanciamento social e o confinamento), dificuldades financeiras e eventual luto, demonstram um elevado potencial para ameaçar a saúde mental de muitos (Pietrabissa & Simpson, 2020). Neste contexto socioeconómico – agravado pela ansiedade, solidão, falta de empatia e depressão (Pietrabissa & Simpson, 2020) – há fortes motivos para acreditar que indicações de que, devido ao seu poder coeso e transformador, as iniciativas culturais e criativas têm um papel central na recuperação, devido ao seu poder coeso e transformador (Sacco & Grossi, 2015; European Commission, 2020).

Por outro lado, apesar dos atuais impactos negativos de curto prazo, a crise da Covid-19 também pode ser percebida como um forte incentivo para acelerar a implementação de adaptações e inovações há muito solicitadas. A revolução digital em curso desde 1980 adquire um forte impulso com o confinamento da população. Em apenas algumas semanas, as soluções digitais no contexto corporativo, educativo, artístico, cultural ou governamental foram adoptadas num ritmo veloz, proporcionando um grande estímulo para a disseminação de abordagens alternativas aplicadas no campo da actividade social e económica (Hantris et al., 2020). Ao oferecer novas actividades e serviços culturais – como visitas a museus online, ou serviços de biblioteca ao domicílio – as cidades europeias também têm respondido de diversas formas aos impactos culturais adversos da crise atual (Eurocities, 2020). Assim, juntamente com a digitalização – um dos principais objetivos transversais da Nova Agenda Europeia para a Cultura –, o potencial cultural visa promover “uma vasta gama de atividades culturais de qualidade, que permitam a todos participar, criar” (European Commission, 2018, p. 3), mas também apresenta desafios e oportunidades substanciais.

Neste sentido, face à fragilidade significativa do sector e à necessidade alarmante de aproveitar a oportunidade para “transformar esta crise num renascimento cultural mundial” (Franceschini in UNESCO, 2020), são várias as questões que estão ainda por responder. Qual é o caminho para a sobrevivência de um meio que vive marcadamente de proximidade física e de experiências partilhadas? Que novas configurações adquire o consumo cultural? Qual é o papel da cultura numa vida confinada e controlada? Como é que a cultura deve assumir e integrar a transformação digital? Quais são os limites éticos para a transformação digital na cultura e nas produções artísticas? Como proteger a criação e produção artísticas na era da digitalização de meios de divulgação e comunicação? Qual é o papel da arte, da cultura e da comunicação na busca da compreensão do que é viver num novo tempo em que tudo está conectado, inclusive os riscos? Optimismo ou cautela: qual é o lado que as marcas têm escolhido nas para as suas comunicações? Que temas perderam o sentido e quais surgiram ou ressurgiram no entretenimento? Como é que a cultura tem mantido a proximidade com os públicos? Quanto ao desenvolvimento tecnológico, tem sido mais uma fonte de incerteza, insegurança e desinformação ou um bálsamo de aproximação e informação segura?

Estes são alguns dos temas a debater nesta edição da Interact que pretende reunir investigações teóricas e empíricas nos campos da arte, da comunicação e da tecnologia dentro da temática do medo, da incerteza, do risco e da vulnerabilidade diante de uma sociedade que já não é o que era, mas ainda não se tornou completamente o que é.

As propostas poderão ser enviadas em formato de texto, imagem, som ou vídeo (até ao limite de 10 minutos) e o uso da interactividade e de hiperligações são incentivadas. São esperadas participações em qualquer uma das diferentes secções da revista:

Ensaio, Interfaces, Laboratório ou Entrevista. (ver https://interact.com.pt/projeto/)

As submissões devem incluir:

-título,

-resumo entre 150 e 450 palavras,

-nota biográfica,

-indicação do formato,

-indicação da secção em que se enquadra.

Para a secção Laboratório deverá ser enviado igualmente um excerto do trabalho, ou outros materiais que documentem a proposta.

As propostas devem ser enviadas até 22 de dezembro de 2021 para o e-mail revistainteract36@gmail.com.

Cabe aos editores a decisão relativamente à publicação ou rejeição das propostas submetidas, tendo vista a adequação da submissão com o tema proposto e também com a linha editorial da Revista Interact. Se aceite para publicação a versão definitiva da proposta deverá ser enviada em Word editável até o dia 22 de janeiro de 2022.

Referências

Bauman, Z. (2006). Liquid Fear. Cambridge: Polity.

Beck, U. (2009). World at Risk. Cambridge: Polity Press.

Committee on Economic, Social and Cultural Rights. (2020, May 24). Statement on the Covid-19 Pandemic and Economic, Social and Cultural Rights. International Human Rights Law Review, 9(1), 135-142. doi:https://doi.org/10.1163/22131035-00901006

Eurocities. (2020, May 26). Cities respond to cultural implications of COVID-19 crisis. Retrieved November 1, 2020, from Eurocities: https://eurocities.eu/latest/cities-respond-to-cultural-implications-of-covid-19- crisis/

European Commission. (2018). A New European Agenda for Culture. Brussels: European Commission. Retrieved November 1, 2020, from https://ec.europa.eu/culture/sites/default/files/2020-08/swd-2018-167-neweuropean-agenda-for-culture_en.pdf

European Commission. (2020, May 27). The EU Budget Powering the Recovery Plan for Europe. Retrieved November 1, 2020, from European Commission: https://ec.europa.eu/info/sites/info/files/factsheet_1_en.pdf

Hantrais, L., Allin, P., Kritikos, M., Sogomonjan, M., Anad, P. B., Livingstone, S., . . . Innes, M. (2020). Covid-19 and the digital revolution. Contemporary Social Science, 1-15. doi:10.1080/21582041.2020.1833234 5

Lucas, I. (26 de Dezembero de 2020). “A vida é livre e isto é uma espécie de antivida” – Um ano para esquecer. Obtido de Público: https://www.publico.pt/2020/12/26/culturaipsilon/noticia/vida-livre-especieantivida-1944198

OECD. (2020). Culture shock: COVID-19 and the cultural and creative sectors. Paris: OECD – Organisation for Economic Co-operation and Development. Retrieved November 1, 2020, from https://www.oecd.org/coronavirus/policy-responses/culture-shock-covid-19-and-the-cultural-andcreative-sectors-08da9e0e

Pietrabissa, G., & Simpson, S. G. (2020, September 9). Psychological Consequences of Social Isolation During COVID-19 Outbreak. Frontiers in Psychology, 11:2201. doi:https://doi.org/10.3389/fpsyg.2020.02201

Sacco, P., & Grossi, E. (2015, June 11). Impact of Culture on Individual Well-being. Retrieved November 1, 2020, from European Comission – Joint Research Centre: https://ec.europa.eu/jrc/en/event/conference/relationship-between-cultural-access-and-individualpsychological-well-being

Saladino, V., Algeri, D., & Auriemma, V. (2020, October 2). The Psychological and Social Impact of Covid-19: New Perspectives of Well-Being. Frontiers in Psychology, 11:577684. doi:https://doi.org/10.3389/fpsyg.2020.577684

Tidey, A. (2020, July 31). Coronavirus: Euro area economy shrinks by 12.1% — biggest drop on record. Retrieved November 1, 2020, from Euronews: https://www.euronews.com/2020/07/31/coronavirus-euro-areaeconomy-shrinks-by-12-1-biggest-drop-on-record

UNESCO. (2020, July 3). Culture & COVID-19 – Impact & Response Tracker – Special Issue. Retrieved November 1, 2020, from UNESCO: https://en.unesco.org/sites/default/files/special_issue_en_culture_covid19_tracker.pdf

Ward, P. R. (2020). A sociology of the Covid-19 pandemic: A commentary and research agenda for sociologists. Journal of Sociology, 56(4), 726-735. doi:10.1177/1440783320939682

Weigel, M. (2020, November 1). Crowdfunding the arts during COVID. Retrieved Outubro 24, 2020, from IUPUI: https://blog.oneill.iupui.edu/2020/07/27/crowdfunding-the-arts-during-covid