Editores: Maria Lucília Marcos (ICNOVA, NOVA FCSH)
Diogo Ferreira (doutorando do ICNOVA)
Prazo de submissão: 30 de dezembro de 2021.
Link: https://rcl.fcsh.unl.pt/index.php/rcl/announcement/view/2
“E foi assim que Hans Castorp viu aquilo que ele já esperava ver mas que, na realidade, não cabe ao homem ver, nem ele alguma vez havia pensado vir a caber-lhe em sorte: olhou para dentro da sua própria sepultura.” É neste misto de encanto e melancolia, afecto indistinguível do puro medo, que o protagonista d’A Montanha Mágica (Der Zauberberg, 1924) contempla as primeiras imagens raios-x do interior do seu corpo. Em pouco mais que duas páginas, Thomas Mann define assim os termos últimos, existenciais, de um problema que hoje se nos impõe com renovada urgência, a saber, o problema da transparência. O que acontece às coisas quando as iluminamos por dentro? Que é feito do homem quando vem à frente o seu esqueleto? Pode a “vontade de verdade” que anima este regime de visibilidade total, as suas políticas e os seus dispositivos, redundar apenas nisto, numa redução ao osso? A essencialização do inumano – eis a aventura em que se lança Hans Castorp, quando descobre que a vida não é senão o invólucro da morte.
Um século depois, o universo das técnicas da transparência já excede em larga medida o consultório médico. Tudo o que existe e constitui um “facto” pode – e sob determinados imperativos políticos, legais ou securitários, deve – ser tornado visível. Nesse sentido, e não obstante o esgotamento da genealogia foucaultiana noutras frentes, somos ainda herdeiros do mundo de paredes de vidro que nos foi descrito em Vigiar e Punir (1975): “Na disciplina, são os sujeitos que devem ser vistos. A sua iluminação assegura a influência do poder que sobre eles se exerce.” A visibilidade afirma-se, pois, como condição inalienável do exercício moderno do poder. Naturalmente, a vida moral e sensível das comunidades humanas não escapa incólume a estas mutações. Veja-se como a prática de levar a público o que há “de privado, de baixo, de separado”, já não implica necessariamente a nudez revolucionária que Peter Sloterdijk (1983) identificou como sendo parte integrante da tradição do kynismós, retomada pela civilização burguesa. Em oposição ao voyeurismo impessoal da pornografia online, hoje a figura desavergonhada de Diógenes, aquele que se servia de meios insolentes para dizer a verdade, parece-nos apelar a uma noção diferente, heróica, da “transparência”.
Ao filósofo Byung-Chul Han devemos um recente e importante estudo filosófico acerca deste tema: A Sociedade da Transparência (2012). Começando com uma bastante sintomática epígrafe de Peter Handke – “Vivo daquilo que os outros não sabem de mim” –, o seu livro faz o diagnóstico de uma desarticulação progressiva da negatividade em favor da positividade no mundo social, ou seja, a substituição de uma sociedade capaz de reconhecer as distâncias e as diferenças entre o Eu e o Outro, por um “inferno do igual”, uma sociedade sem lacunas e espaços vazios. Não se atendo a uma mera condenação da cultura da pós-privacidade, Han dá conta da extensão ontológica do regime da transparência, que ele define como uma “coacção sistémica que se apodera de todos os factos sociais e os submete a uma transformação profunda” (p. 12). O transparente surge como incompatível com a incomensurabilidade do acontecimento, a demora da significação, a não-coincidência da alteridade. Compreende-se, então, de que forma “o veredicto geral da sociedade positiva” se encontra sintetizado no omnipresente botão de “Gosto” do Facebook (p. 19).
Sob tais exigências de transparência, como se perspectiva o futuro da comunicação? Verifica-se desde logo, diz-nos Byung-Chul Han, uma tendência para a hipercomunicação, a aversão ao segredo e ao não-dito. Esta era já a disposição privilegiada pela cibernética, tal como ela nos surgia descrita pelos trabalhos do colectivo anarquista Tiqqun (2001). Nesses textos encetava-se uma crítica cerrada à ideologia da democracia directa, supostamente “concretizada” através dos media electrónicos. Os cidadãos, convidados a “participar totalmente” na vida pública com o recurso às novas tecnologias de telecomunicação, estariam na verdade a consentir a sua integração em circuitos de informação, tornando-se sujeitos hipercomunicadores desprovidos de substância. Nas palavras dos autores: “Cada pessoa deveria tornar-se um revestimento incorpóreo, o melhor condutor possível da comunicação social, o locus de um infinito ciclo de retroalimentação que é feito para não ter vértices.” O universo prosumer da Web 2.0 era assim antecipado e denunciado nas suas eufemísticas premissas. Mas uma transformação mais profunda afigura-se, em todo o caso, irreversível: a ascensão da “língua técnica”, celebremente teorizada por Heidegger (1962). Com o advento da cibernética, a linguagem é efectivamente convertida num processo transparente de transmissão de sinais unívocos, capaz de produzir efeitos calculados. Para pensar esta conversão em informação, os estudos da comunicação devem agora situar o seu objecto para lá dos entendimentos antropológicos do comportamento e da subjectividade.
Nesta edição temática da RCL, desejamos aprofundar estas e muitas outras questões respeitantes ao problema da transparência na comunicação. O tema adquire uma nova pertinência no contexto de uma pandemia global, com o desenvolvimento de novas leis, técnicas e práticas de visibilidade que, como se sabe, têm suscitado múltiplas reacções. Dois exemplos polémicos: o de Agamben, que se insurgiu publicamente contra a migração do trabalho académico para o meio digital – o regime de aulas por videoconferência seria, no seu entender, mais um avanço da “ditadura da telemática” –, e a posição diametralmente oposta de Benjamin Bratton, que vê na resposta à pandemia uma oportunidade para conceber a “biopolítica positiva” de uma sociedade verdadeiramente “planetária”. É no sentido de acolher esta diversidade de contributos que convidamos os investigadores a enviar propostas que tratem os seguintes tópicos, entre outros:
– A importância do conceito de transparência para os estudos da Comunicação
– Interfaces transparentes e a mediação da imediação
– Políticas securitárias, problemas de privacidade e a sociedade do Big Data
– A (re)definição das esferas pública e privada da comunicação
– Autoficção e metaficção na literatura
– Identidade, alteridade e apresentação do Eu nos social media
– Semióticas do visível e do invisível
– O segredo político e empresarial
– O poder modulatório: estudos deleuzianos das “sociedades de controlo”
– Democracia participativa
– Os novos media e o processo da individuação
– A relação entre linguagem, discurso e verdade
– O aparecimento de novas leis, técnicas e práticas de visibilidade no contexto de uma pandemia global (COVID-19)
Os artigos podem ser escritos em inglês, francês ou português, e devem estar em conformidade com as directrizes de submissão do jornal. Serão depois avaliados segundo um sistema de revisão cega por pares. Todas as contribuições devem ser enviadas através da plataforma OJS até ao dia 30 de Dezembro de 2021.
Para mais informações, pode entrar em contacto com a editora Maria Lucília Marcos (mlms@fcsh.unl.pt) e/ou o editor Diogo Ferreira (diogocstferreira@gmail.com).